quinta-feira, 19 de novembro de 2009

OS GÊNEROS DO DISCURSO E O TEXTO ESCRITO NA SALA DE AULA UMA CONTRIBUIÇÃO AO ENSINO

Autora: Maria Angélica Freire de Carvalho (UERJ, UNICAMP)

...o texto é um construto histórico e social, extremamente complexo e multifacetado, cujos segredos (quase ia dizendo mistérios) é preciso desvendar para compreender melhor esse "milagre" que se repete a cada nova interlocução - a interação pela linguagem, linguagem que, como dizia Carlos Franchi, é atividade construtiva. (Ingedore G. Villaça Koch: Nov/2001).

          O objetivo deste texto é o de retomar a questão dos gêneros textuais, elucidada por Mikhail Bakhtin, bem como o de apresentar as particularidades e as características de tal abordagem. E a partir disto, verificar o entremeio teoria e prática de ensino no tocante à produção de textos na escola. Outro ponto abordado é a relação entre aquela concepção linguistico-enunciativa e as diretrizes que norteiam os currículos escolares e os seus conteúdos mínimos, na área de Linguagem, refletindo a função do professor no exercício pedagógico.
          Destaca-se como ponto de partida para este texto um dos aspectos sobre o ensino de Língua Portuguesa apresentado pelos Parâmetros Curriculares Nacionais, os famigerados PCNs, diretrizes que norteiam os currículos e seus conteúdos mínimos, novo caminho aludido como saída para muitos impasses na área educacional: os gêneros textuais como objeto de ensino.
          Sabe-se que, naquele documento, os conteúdos de Língua Portuguesa encontram-se distribuidos em dois eixos de práticas de discursivas: usos de linguagem e reflexão sobre língua e a linguagem. Aqui, ressalta-se o eixo usos de linguagem, o qual tem como enfoque o caráter enunciativo desta, o que permite nomear as seguintes preocupações de estudo: a historicidade da linguagem; o contexto de produção dos enunciados; a produção de textos orais e escritos; o modo como o contexto de produção contribui para a organização do discurso, ou seja, para as tipologias comunjicacionais (gêneros e suportes). Disto, conclui-se que o texto é considerado unidade de ensino e os gêneros textuais, objetos de ensino.
          Passa-se a refletir, então, sobre tais objetos de ensino, focalizando o entrelace entre os gêneros discursivos e a produção textual na escola. A concepção para a proposta de organização dos gêneros discursivos se pauta num enfoque linguístico-enunciativo, como já se mencionou, que tem como pano de fundo a teoria dos gêneros do discurso, conforme Mikhail Bakhtin (2000: 279-287).
          BAKHTIN argumenta que dentro de uma dada situação linguística o falante/ouvinte produz uma estrutura comunicativa que se configurará em formas-padrão relativamente estáveis de um enunciado, pois são formas marcadas a partir de contextos sociais e históricos. Em outras palavras, tais formas estão sujeitas a alterações em sua estrutura, dependendo do contexto e dos falantes/ouvintes que produzem, os quais atribuem sentido a determinado discurso. Logo, conclui-se que são muitas e variadas as formas dos gêneros textuais (BAKHTIN, 1953/2000: 279).
          Nas palavras deste autor, os gêneros textuais são "tipos relativamente estáveis de um enunciado" (idem, p.279 e 281) e que dada a riqueza e a variedade dos tipos [1], eles podem ser separados em dois grupos: gêneros primários - aqueles que fazem parte da esfera cotidiana da linguagem e que podem ser controlados diretamente na situação discursiva, tais como: bilhetes, cartas, diálogos, relato familiar, ... - e gêneros secundários - trata-se de textos, geralmente mediados pela escrita, que fazem parte de um uso mais oficializado da linguagem; dentre eles, o romance, o teatro, o discurso científico, ..., os quais, por esta razão, não possuem o imediatismo do gênero anterior.
          Entretanto, os gêneros secundários acabam, de certo modo, suplantando os gêneros primários, considerando-se que estes fazem parte de uma troca verbal espontânea, e que aqueles representam uma intervenção nesta espontaneidade, pois se apresentam de modo mais complexo e, geralmente [2], escrito. Não é absurdo dizer que os gêneros primários sãoinstrumentos de criação dos gêneros secundários. Daí, podem-se apontar as características dos gêneros textuais: são formas-padrão de um enunciado que possuem conteúdo, uma estruturação específica e mutável a partir de relações estabelecidas entre os interlocutores; do mesmo modo, um estilo ou certa configuração de unidades linguísticas.
          O professor da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Genebra, SCHNEUWLY, (Apud ROJO, R>H>R, texto mimeografado, p.2) define os gêneros como instrumentos, mega-instrumentos, de articulação entre as práticas sociais e os objetos escolares; principalmente, no tocante à produção e à compreensão de textos orais ou escritos. Ele ressalta que neste processo estão envolvidos elementos centrais da atividade humana: sujeito, ação, instrumento. Enquanto sujeito, o enunciador age discursivamente; na ação, tem-se a situação comunicativa definida e no que diz respeito ao instrumento, configura-se parâmetros, gêneros que são pinçados de acordo com a situação. Tanto aquele autor como BRONCKART [3] argumentam, ainda, que tais realizações são apontadas como capacidades: capacidade de ação: adaptação às características do contexto e do referente: capacidade discursiva: mobilização de modelos discursivos; capacidade linguístico-discursiva: dominio de operações psicolinguísticas e das unidades linguísticas.
          Com estas postulações, vê-se que os modos de organização do discurso e a organização estrutural dos enunciados são resultantes da situação de produção daquele(s) discurso(s); assim, é necessário delinear os gêneros do discurso, citando a situação de produção, o tema, a forma composicional, as marcas linguísticas, etc e disponibilizá-los aos produtores/alunos e aos orientadores/professores para uma prática efetiva da linguagem. Para tel, é importante considerar, segundo SCHNEUWLY (texto mimeografado, p.11), o modo como se operam as escolhas discursivas:
          a) psicologicamente, um tipo de texto é o resultado de uma ou de várias operações de linguiagem efetuadas no curso do processo de produção;
        b) estas operações podem, em especial, dizer respeito às seguintes dimensões:
                 * definição da relação à situação material de produção, tendo como possibilidades uma relação de implicação ou uma relação autônoma;
                 * definição de uma relação enunciativa com o dito, tratado como disjunto, pertencente a um outro mundo, linguisticamente criado, ou tratado como conjunto, pertencente a este mundo;
             * provavelmente, a isto se somam decisões sobre os modos de geração de conteúdos (DOLZ, 1987), que podem descrever, por exemplo, referindo-nos aos tipos de sequencialidades distinguidas por ADAM[4] (1992);
          c) levando em conta o que foi dito anteriormente, fazemos ainda a hipótese suplementar de que estas operações não se tornamdisponíveis de uma só vez, mas que se constroem no curso do desenvolvimento.
          Para BRONCKART (1994), os gêneros constituem ações de linguagem que requerem do agente produtor uma série de decisões que ele necessita ter competência para executar: a primeira delas, é a escolha que deve ser feita a partir do rol de gêneros existentes, em que ele escolherá aquele que lhe parece adequado ao contexto e à intenção comunicativa; e a segunda, é a decisão e a aplicação que poderá acrescentar algo a forma destacada ou recriá-la. Este autor conclui:
             A escolha do gênero deverá, portanto, levar em conta os objetivos visados, o lugar social e os papéis dos participantes. Além disso, o agente deverá adaptar o modelo do gênero a seus valores particulares, adotando um estilo próprio, ou mesmo contribuindo para a cosntante transformação dos modelos. (BRONCKART, 1994). 
          No tocante à ação pedagógica, disponibilizarem-se aos alunos modelos de textos não é o bastante, é preciso encaminhar uma reflexão maior sobre o uso de cada um deles, do mesmo modo, considerar o contexto de uso e os seus interlocutores. Por isto, é imprescindível abarcar a questão dos gêneros discursivos como um quesito central do trabalho com a linguagem na escola. Não se pretende, somente, às tipologias textuais: narração, descrição, argumentação, injunção, etc.; pois, afinal, estas senquencialidades mesclam-se nos variados gêneros discursivos, constituindo-os em formas híbridas destinadas a um propósito comunicativo que se relacionará às práticas sócio-comunicativas vigentes.
          Este quesito se fortifica ainda mais ao se levar em conta que é a partir dele que outros aspectos relacionados ao ensino da Língua são vistos: avaliar as formas existentes, observar o plano composicional e verificar as situações de uso são ações que precisam ser bem orientadas para que a produção e a compreensão da linguagem se realizem de modo significativo. Consequentemente, tem-se, como se definiu a princípio, a língua como unidade de ensino e os gêneros como objeto deste.
          Deste modo, do que foi exposto, pode-se concluir que é de extrema importância a utilização em sala de aula, independente da disciplina de estudo, de diferentes gêneros textuais. O professor/orientador deve chamar a atenção do aluno/produtor para o plano composicional, o conteúdo temático e o estilo pertencentes a determinado texto que se pretende produzir e /ou que se está em interação. Com isto, certamente, ele estará contribuindo para a construção do(s) sentido(s) do texto, o que confirma a imbricação entre produção e compreensão daqueles. De acordo com KOCH (2002:53):
               O contato com os textos da vida cotidiana, como anúncios, avisos de toda a ordem, artigos de jornais, catálogos, receitas médicas, prospectos, guias turísticos, literatura de apoio à manipulação de máquinas, etc., exercita a nossa capacidade metatextual para a construção e intelecção de textos. (Grifos nossos).
          É compreensível que quanto maior for o contato do aluno com os diferentes tipos de textos, quer sejam oriundos da esfera social cotidiana (diálogos, cartas, bilhetes, ...), quer sejam provenientes de uma esfera pública e mais complexa de interação verbal (discurso científico, teatro, romance, ...) maior será a sua capacidade de identificar e de refletir sobre os mecanismos linguísticos e extra-linguísticos que constituem o processo comunicativo; em particular, aqui, ao texto escrito e a sua procução. É mister chamar atenção ao fato de que toda atividade de produção tem de caminhar de acordo com um objetivo, para que ela se configure como tal e não seja apenas uma mera redação escolar. 
         As considerações teóricas trazidas, aqui, não são uma novidade, como se possa supor, por serem encontradas nos argumentos dos novos parâmetros curriculares. Mas causa estranheza constatar que elas não fazem , ainda, (?), parte de muitos espaços dialógicos importantes, tais como os cursos de Letras, responsáveis pela formação dos futuros professores de Língua Portuguesa.
          Afirmar que os PCNs apresentam propostas inovadoras em que se ressalta o esforço para a promoção da reflexão e de sua transposição didática para, assim, realizar uma construção dialogada entre ensino e prática educativa está correto. Entretanto, é necessário admitir que a elaboração de tal documento e o reconhecimento de sua eficácia não bastam para que a prática educativa se dê de modo pleno e satisfatório.         
          Em suma, para que as postulações apresentadas se configurem em mecanismos de mudança e de promoção do saber é imprescindível que se invista no profissional de educação, oferecendo-lhe condições para que se mantenha informado, realizando estudos intensificados e com atualização constante. Assim, certamente, fazer-se-á a imperiosa contribuição ao ensino.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: ---. Estética da criação verbal, [trad. francês: Maria Ermantina Galvão; revisão: Marina Appenzeller]. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.279-287.
KOCH, Ingedore G. Villaça. Os gêneros do discurso e a produção textual na escola. Campinas: UNICAMP, [mimeo].
------. Os gêneros do discurso. In: ---. Desvendando os segredos do texto, São Paulo: Cortez, 2002, p. 53-60.
MAINGUENEAU, Dominique. Tipos e gêneros de discurso. In: Análise de textos de comunicação, trad. de Cecília P. de Souza-e-Silva, Décio Rocha, São Paulo: Cortez, 2001, p. 59-70.
ROJO, Roxane Helena Rodrigues. Interação em sala de aula e gêneros escolares do discurso: um enfoque enunciativo. [mimeo].
------. Modos de transposição dos PCNs às práticas de sala de aula: progressão curricular e projetos, In: --- et all, A prática de linguagem em sala de aula - praticando os PCNs, São Paulo: EDUC - PUC-SP, 2000, p. 27-38.
SCHNEUWLY, Bernard & DOLZ, Joaquim. Os gêneros escolares: das práticas de linguagem aos objetos de ensino. Revista Brasileira de Educação, nº 11, mai/jun/jul/ago-1999, p. 5-16.
------. Gênros e tipos de texto: considerações psicológicas e ontogenéticas, [tra. Roxane Helena Rodrigues Rojo - LAEL/PUC-SP, mimeo].

[1] Em alguns estudos desenvolvidos pela Linguística Textual, tipo textual é uma noção que remete ao funcionamento da constituição estrutural do texto, isto é, um texto, pertencente a um dado gênero discursivo, pode trazer na sua configuração váriosa tipos textuais como a narração, descrição, dissertação / argumentação e injunção, os quais confeccionam a tessitura do texto, ou, nas palavras de Bakhtin, constituem a estrutura composicional do texto segundo os padrões do gênero. De acordo com MAINGUENEAU (2001), p. 61, embora alguns autores empreguem os dois termos indiferentemente, a tendência atual é discerni-los: "os gêneros do discurso pertencem a diversos tipos de discursos associados a vastos setores de atividade social". Para Luiz A. Marcushi, " um tipo seria muito mais um construto teórico, ao passo que um gênero seria uma identificação empírica, mas não necessariamente a identificação de um evento".

[2] Neste gênero há a predominância de relações formais mediadas pela leitura / escrita, em especial, o que não significa ser uma característica exclusiva e sine qua non.

[3] Professor da Universidade de Genebra, desenvolveu trabalhos sobre este tema com SCHNEUWLY.

[4] Citam-se, aqui, as sequencialidades distinguidas por ADAM (1992): narrativa, descritiva, argumentativa, instrutiva e dialogal.




















Nenhum comentário:

Postar um comentário