sexta-feira, 27 de novembro de 2009

O NEOPRODUTIVISMO E SUAS VARIANTES: NEO-ESCOLANOVISMO, NEOCONSTRUTIVISMO, NEOTECNICISMO (1991-2001)

Autor: Dermeval Saviani

          O final da década de 1980 já prenunciava as dificuldades crescentes enfrentadas pelas correntes pedagógicas "de esquerda" no contexto brasileiro. O vigoroso movimento dos educadores, cuja manifestação mais conspícua era dada pela CBEs, de periodicidade bienal, entrava em refluxo. Sintoma dessa situação foi a própria dificuldade de organização da VI CBE, que deveria ser realizada em 1990 e acabou acontecendo apenas em setembro de 1991. Epílogo da série das CBEs, essa conferência encerrou também mais uma fase da história da idéias pedagógicas no Brasil, o que se petenteia no tratamento dos temas que integraram sua programação.
          O tema central do evento, "Política nacional de educação", foi distribuido por cinco temas básicos, por sua vez desdobrados em 35 temas específicos trabalhados em 21 simpósios e 14 mesas-redondas. Além do livro de resumos, os trabalhos completos foram publicados pela Editora Papirus em cinco volumes versando, respectivamente, sobre os cinco temas básicos, a saber, "Escola básica", "Estado e educação", "Sociedade civil e educação", "Trabalho e educação" e "Universidade e educação".
          Compreensivelmente é no âmbito dos temas "Estado e educação" e "Trabalho e educação" que se encontram as análises explicitadoras da nova fase que caracterizará a década de 1990. Em "Estado e educação" já aflorou explicitamente a problemática do neoliberalismo nos simpósios "A crise do Estado e o neoliberalismo: perspectivas para a democracia e a educação na América Latina"; " público e o privado: trajetória e contradições da relação Estado e educação"; e "Impasses e alternativas no financiamento das políticas públicas para a educação" (COLETÂNEA CBE, 1992a). Em "Trabalho e educação" o problema da mudança das bases produtivas foi abordado em vários momentos, com destaque para os simpósios "As mudanças tecnológicas e a educação da classe trabalhadora" e "Os impactos da revolução tecnológica: transformação dos processos produtivos e qualificação para o trabalho" (COLETÂNEA CBE, 1991B). Mas a problemática própria dos anos de 1990 fez-se presente também nos demais temas. Assim, por exemplo, no que se refere à "Escola básica", destaca-se o trabalho de Luiz Carlos de Freitas, significativamente denominado "Conseguiremos escapar ao neotecnicismo?" (COLETÂNEA CBE, 1992C). Em "Sociedade civil e educação" temos o texto de Paulo José Duval da Silva Krischke, "A desmobilização dos movimentos sociais no governo Collor", além de todo um simpósio dedicado ao tema da "produção da exclusão social: violência e educação" (COLETÂNEA CBE, 1992d). Em "Universidade e educação", mesa-redonda "Condições de sobrevivência das universidades federais" (COLETÂNEA CBE, 1992e) tratou de questões relacionadas com a nova concepção de Estado (o chamado Estado mínimo), ainda que essa relação não tenha sido explicitada de forma direta.
          O clima cultural próprio dessa época vem sendo chamado de "pós-moderno", desde a publicação do livro de Lyotard, A condição pós-moderna, em 1979. Esse momento coincide com a revolução da informática. Se o moderno se liga à revolução centrada nas máquinas mecânicas, na conquista do mundo material, na produção de novos objetos, a pós-modernidade centra-se no mundo da comunicação, nas máquinas eletrônicas, na produção de símbolos. Isso significa que antes de produzir objetos se produzem os símbolos; ou seja, em lugar de experimentar, como fazia a modernidade, para ver como a natureza se comporta a fim de sujeitá-la aos designios humanos, a pós-modernidade simula em modelos, por meio de computadores, a imagem dos objetos que pretende produzir. "O recurso aos grandes relatos está excluído" (LYOTARD, 2002, p.111). Se a "ciência moderna" se legitimava pelo discurso filosófico, isto é, pelas metanarrativas, a ciência "pós-moderna" caracteriza-se pela "incredulidade em relação aos metarrelatos" (idem, p.xvi), baseada numa pragmática que comporta diferentes jogos de linguagem (idem, ibidem). A questão da operacionalização e dos comportamentos observáveis regida pelos critérios da eficiência, trabalhada pela psicologia behaviorista, faz-se presente, mas refuncionalizada. A legitimação tanto da pesquisa (idem. pp. 77-78) como do ensino (idem, pp. 88-98) se dá pelo desempenho, pelas competências que forem capazes de instaurar. Mas Lyotard adverte sobre a inconsistência da "lógica do melhor desempenho" (idem, p. xvii) postulando que a ciência pós-moderna "sugere um modelo de legitimação que não é de modo algum o da melhor performance, mas o da diferença como paralogia" (idem, p. 108).
          Em termos econômico-políticos, a denominação que se generalizou é "neoliberalismo"". Se o clima pós-moderno remete ao livro de Lyotard, o neoliberalismo remete ao Consenso de Washington. Essa expressão decorreu da reunião promovida em 1989 por John Williamson no International Institute for Economy, que funciona em Washington, com o objetivo de discutir as reformas consideradas necessárias para a América Latina. Os resultados dessa reunião foram publicados em 1990. Na verdade, Williamson denominou Consenso de Washington o conjunto das recomendações saídas da reunião porque teria constatado que se tratava de pontos que gozavam de certa unanimidade, ou seja, as reformas sugeridas eram reclamadas pelos vários organismos internacionais e pelos intelectuais que atuavam nos diversos institutos de economia. Ora essa constatação reflete os rumos tomados pela política mundial após a ascensão de Margaret Thatcher, na Inglaterra, que governou entre 1979 e 1990, e de Ronald Reagan, nos Estados Unidos, cujo governo se estendeu de 1981 a 1989. Tais governos assim como o de Kohl, que governou a Alemanha entre 1982 e 1998, representavam a posição conservadora nos respectivos países e se instauraram sob o signo do ultraliberalismo de Hayek e do monetarismo de Milton Friedman, cujo prestígio na década de 1970 pode ser aferido pela obtenção do Prêmio Nobel de Economia em 1974 e 1976, respectivamente. Esse novo pensamento hegemônico convergia em torno de um denominador comum: "o ataque ao estado regulador e a defesa do retorno ao estado liberal idealizado pelos clássicos" (FIORI, 1998, p. 116). Ainda segundo Fiori, a reordenação empreendida implicou, no campo econômico, a elevação ao status de valor universal de políticas como o equilíbrio fiscal, a desregulação dos mercados, a abertura das economias nacionais e a privatização dos serviços públicos; no campo político, a crítica às democracias da massa (idem, ibidem).
          No que se refere à América Latina, o consenso implicava, em primeiro lugar, um programa de rigoroso equilíbrio fiscal a ser conseguido por meio de reformas administrativas, trabalhistas e previdenciárias tendo como vetor um corte profundo nos gastos públicos. Em segundo lugar, impunha-se uma rígida política monetária visando à estabilização. Em terceiro lugar, a desregulação dos mercados tanto financeiro como do trabalho, privatização radical e abertura comercial. Essas políticas que inicialmente tiveram de ser, de algum modo, impostas pelas agências internacionais de financiamento mediante as cham,adas condicionalidades, em seguida perdem o caráter de imposição, pois são assumidas pelas prórpias elites econômicas e políticas dos países latino-americanos.
          Nesse novo contexto, as idéias pedagógicas sofrem grande inflexão: passa-se a assumir no próprio discurso o fracasso da escola pública, justificando sua decadência como algo inerente à incapacidade do Estado de gerir o bem comum. Com isso se advoga, também no âmbito da educação, a primazia da iniciativa privada regida pelas leis do mercado.
           Não é fácil caracterizar em suas grandes linhas essa nova fase da idéias pedagógicas. Isso porque se trata de um momento marcado por descentramento e desconstrução das idéias anteriores, que lança mão de expressões intercambiáveis e suscetíveis de grande volatilidade. Não há, poi, um núcleo que possa definir positivamente as idéias que passam a circular já nos anos de 1980 e que se tornam hegemônicas na década de 1990. Por isso sua referência se encontra fora delas, mais precisamente nos movimentos que as precederam. Daí que sua denominação tenda a se fazer lançando mão das categorias precedentes às quais se antepõem prefixos do tipo "pós" ou "neo". Não obstante, será feito um esforço, a seguir, de ordenar um pouco essas idéias a partir daquilo que poderíamos considerar suas categorias centrais: neoprodutivismo, neo-escolanovismo, neoconstrutivismo, neotecnicismo.

1 . As bases econômico-pedagógicas: reconversão produtiva, neoprodutivismo e a "pedagogia da exclusão"

          A crise da sociedade capitalista que eclodiu na década de 1970 condiziu à reestruturação dos processos produtivos, revolucionando a base técnica da produção e conduzindo à substituição do fordismo pelo toyotismo. O modelo fordista apoiava-se na instalação de grandes fábricas operando com tecnologia pesada de base fixa, incorporando os métodos tayloristas de racionalização do trabalho; supunha a estabilidade no emprego e visava à produção em série de objetos estandardizados, em larga escala, acumulando grandes estoques dirigidos ao consumo de massa. Diversamente, o modelo toyotista apóia-se em tecnologia leve, de base microeletrônica flexível, e opera com trabalhadores polivalentes visando à produção de objetos diversificados, em pequena escala, para atender à demanda de nichos específicos do mercado, incorporando métodos como o just in time que dispensam a formação de estoque; requer trabalhadores que, em lugar da estabilidade no emprego, disputem diariamente cada posição conquistada, vestindo a camisa da empresa e elevando constantemente sua produtividade.
          Nessas novas condições reforçou-se a importância da educação escolar na formação desses trabalhadores que, pela exigência da flexibilidade, deveriam ter um preparo polivalente apoiado no domínio de conceitos gerais, abstratos, de modo especial aqueles de ordem matamática. Manteve-se, pois, a crença na contribuição da educação para o processo econômico-produtivo, marca distintiva da teoria do capital humano. mas seu significado foi substantivamente alterado.
          Na verdade, essa teoria surgiu no período denominado pela economia keynasiana e pela política do Estado de bem-estar, que, na chamada era de ouro do capitalismo, preconizavam o pleno emprego. Assim, a versão originária da teoria do capital humano entendia a educação como tendo por função preparar as pessoas para atuar num mercado em expansão que exigia força de trabalho educada. À escola cabia formar a mão-de-obra que progressivamente seria incorporada pelo mercado, tendo em vista assegurar a competitividade das empresas e o incremento da riqueza social e da renda individual.
          No entanto, após a crise da década de 1970, a importância da escola para o processo econômico-produtivo foi mantida, mas a teoria do capital humano assumiu um novo sentido. O significado anterior estava pautado numa lógica econômica centrada em demandas coletivas, tais como o crescimento econômico do país, a riqueza social, a competitividade das empresas e o incremento dos rendimentos dos trabalhadores. O significado que veio a prevalecer na década de 1990 deriva de um lógica voltada para a satisfação de interesses privados, "quiada pela ênfase nas capacidades e competências que cada pessoa deve adquirir no mercado educacional para atingir uma melhor posição no mercado de trabalho" (GENTILI, 2002, p. 51).
          Nesse novo contexto não se trata mais da iniciativa do Estado e das instâncias de planejamento visando a assegurar, nas escolas, a preparação da mão-de-obra para ocupar  postos de trabalho definidos num mercado que se expandia em direção ao pleno emprego. Agora é o indivíduo que terá de exercer sua capacidade de escolha visando a adquirir os meios que lhe permitam ser competitivo no mercado de trabalho. E o que ele pode esperar das oportunidades escolares já não é o ecesso ao emprego, mas apenas a conquista do status de empregabilidade. A educação passa a ser entendida como um investimento em capital humano individual que habilita as pessoas para a competição pelos empregos disponíveis. O acesso a diferentes graus de escolaridade amplia as condições de empregabilidade do indivíduo, o que, entretanto, não lhe garante emprego, pelo simples fato de que, na forma atual do desenvolvimento capitalista, não há emprego para todos: a economia pode crescer convivendo com altas taxas de desemprego e com grandes contingentes populacionais excluídos do processo. É o crescimento excludente, em lugar do desenvolvimento inclusivo que se busca atingir no período keynesiano. A teoria do capital humano foi, pois, refuncionalizada e é nessa condição que ela alimenta a busca de produtividade na educação. Eis por que a concepção produtivista, cujo predomínio na educação brasileira se iniciou na década de 1960  com a adesão à teoria do capital humano, mantém a hegemonia nos anos de 1990, assumindo a forma do neoprodutivismo.
          A ordem econômica atual, denominada pós-fordista e pós-keynesiana, pressopõe, ou melhor, assenta-se na exclusão, categoria que comparece duplamente: ela é pressuposta, num primeiro sentido, na medida em que se admite, preliminarmente, que na ordem econômica atual não há lugar para todos. Portanto, boa parte daqueles que atingem a idade para ingressar na População Economicamente Ativa (PEA) nela nem sequer chega a entrar. Num segundo sentido, a exclusão é pressuposta porque, incorporando crescentemente a automação no processo produtivo, a ordem econômica atual dispensa, também de forma crescente, mão-de-obra. Estimulando a competição e buscando maximizar a produtividade, isto é, o incremento do lucro, a extração de mais-valia, ela rege-se por uma lógica que estabelece o predomínio do mercado morto (capital) sobre o trabalho vivo, conduzindo à exclusão deliberada de trabalhadores. É isso que se  patenteia no empenho constante, tanto por parte das empresas como por parte dos governos, em conseguir reduzir a folha salarial e os gastos trabalhistas e previdenciários.
          Configura-se, então, nesse contexto, uma verdadeira "pedagogia da exclusão".
 










2 comentários:

  1. Parabéns pelo trabalho de vocês!

    Prof. Chico Gretter
    Vice-presidente da APROFFESP
    www.aproffesp.blogspot.com.br

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