quarta-feira, 18 de novembro de 2009

GÊNERO NARRATIVO: UMA DIALOGIA ENTRE LEITURA E ESCRITA

Autora: Nilza Pereira Crepaldi

          O nosso aluno da escola pública vem apresentando muitas dificuldades de letramento tanto na leitura quanto na escrita devido a um processo artificial de ensino da língua voltado ao imediatismo, quando os textos literários ainda são empregados mais como meros tipos invariáveis de textos do que como gêneros discursivos, cujo estudo do tema, estrutura composicional e estilo não levam em conta o seu destinatário, as condições de produção, a situação e o contexto interativo.
          Assim, o ensino da língua (leitura, oralidade, escrita, reescrita e análise da língua), na escola, deve estar voltada à interatividade, destacando a relação locutor e interlocutor, as condições sociais de produção, a situacionalidade, a contextualidade e os sistemas de referência em que ela é gerada, visando que os alunos a dominem em situações variadas, desenvolvendo-lhes um comportamento discursivo consciente e voluntário e ajudando-os a construir uma representação das atividades de escrita e fala em situações mais complexas, como produto de um trabalho de lenta elaboração. Essa metodologia de trabalho visa colocar os alunos em situações de comunicação que sejam as mais próximas possíveis de verdadeiras situações de comunicação, que tenham um sentido para eles, a fim de melhor dominá-las como realmente são e possibilitando-lhes uma prática nova de linguagem de difícil domínio.
          Deste modo é preciso pensar num trabalho em sala de aula norteado por uma sequência didática, partindo da mediação do gênero literário conto de fadas (o clássico Chapeuzinho Vermelho de Perrault) com atividades discursivas por meio da oralidade, bem como oportunidades para que o aluno responda à leitura pela produção oral, visual (plástica) ou escrita do gênero e atividade de reescrita, possibilitando pensar a sua escrita e reelaborá-la diante da intervenção de um ser mais experiente (colega e professor).
          Trata-se, portanto, de um procedimento didático baseado na metodologia de ensino da língua da professora Lopes-Rossi, defendida também por Lucília Garcez, Roxxane Rojo, Jaqueline P. Barbosa e muitos outros, e fundamentada na experiência didática dos europeus Bernard Schneuwly & Joaquim Dolz. Essa forma de trabalho poderá ter como proposta inicial à classe a produção de uma coletânea de conto de fadas a ser apresentada à comunidade escolar. Em seguioda, sugere-se uma produção in icial oral (hora do conto de fadas) dos alunos, de forma individual e/ou coletiva, quando a turma constroi uma representação a ser executada. A segunda parte é a apresentação do gênero conto de fadas, quando se discute, de forma interativa e dialógica, o tema, os elementos constitutivos e o seu estilo, familiarizando o aluno com a sua construção e levando-o a decodificar, compreender, interpretar e reter o seu conteúdo que é gerador de elementos que enriquecem a sua formação humana. A terceira etapa é a produção final do aluno, dando-lhe oportunidade de pôr em prática as noções e instrumentos estudados. Esta fase segue o mesmo processo de estudo do gênero, pois é o momento em que o aluno, pela mediação do (a) professor (a), num processo dialógico constante, reflita sobre sua escrita, analisando a linguagem de seu texto, fazendo as devidas adequações e reelaborando o seu produto final para ser inserido na coletânea de contos de fadas da classe.
          Essa abordagem literária está alicerçada nas concepções filosóficas do materialismo histórico de Bakhtin e nas teorias sócio-interacionista vygotskianas, enfatizando as condições de produção durante o processo de comunicação entre autor/locutor e leitor/interlocutor, mediados por um determinado instrumento/gênero narrativo e um ser mais experiente / o professor mediador. para isso, ao trabalhar nessa abordagem, o mediador deverá ter em mente: o que irá ensinar, isto é, qual será o instrumento de mediação empregado para atingir o educando (por qual gênero optar); que recursos e estratégias serão empregados para manter a interação e conseguir uma resposta ativa desse leitor/interlocutor, isto é, que exercício elaborar, que comandos usar e que meios físicos e humanos possam ser aí utilizados; quem será o seu interlocutor (nível, série, classe, aluno), por que irá trabalhar esse ou aquele gênero discursivo e quando será possível essa intermediação. Além disso, o mediador se pautará nos conhecimentos prévios dos alunos e selecionará conteúdos que possam elevar (em espiral) o nível mental de conhecimento deles, e para isso é fundamental que se diagnostique o nível real de conhecimento em que se encontra a sua classe. Em contrapartida, ele deverá, antecipádamente, preparar os exercícios voltados às necessidades do contexto sócio-cultural de seus alunos, motivando-os para o que será realizado e estar ciente que toda atividade de leitura ou de escrita gira em torno de um tema, um estilo e uma composição. Esses três itens estão interligados e, por isso, os elementos que os constituem devem ser analisados nas relações uns com os outros, mediante as condições de produção para que o enunciado constitua sentido para o leitor.
          Ao apresentar esse gênero discursivo (conto de fadas), após o contato íntimo do aluno com o texto, será necessário que o professor/mediador interfira oralmente, numa primeira etapa, com questões que o levem a pensar sobre as condições de produção do gênero para que ele notequem produziu o texto, quando e onde foi produzido, em que suporte e em que esfera social costuma circular, para que se produza tal gênero e para quem ele é produzido. A partir daí explora-se o tema do texto, o estilo adotado pelo autor e, finalmente, como o texto foi construído. Para isso, é fundamental que se oriente a classe, oralmente, instigando a participação coletiva dos alunos e registrando-a no quadro de giz. Nessa etapa, o profissional da educação poderá usar também algum recurso auxiliar pedagógico (visual, sonoro ou midiático) que a escola ofereça. O objetivo maior é levar o aluno a ver e sentir além do que está explícito no texto, ou seja, a sua ideologia, compreendendo os vazios que ali existem, para que venha desenvolver o seu senso crítico, capaz de pensar a sua realidade imediata e o universal, rompendo com os paradigmas da sociedade, combatendo preconceitos e mitos e criando instrumentos para enfrentar os seus problemas.
          Posteriormente, o aluno terá a oportunidade de responder à leitura por meio de uma produção textual (visual, escrita ou oral). O procedimento aqui será similar ao da leitura, pois é preciso escolher os comandos adequados para que o aluno consiga relacionar o que leu ao seu contexto de produção. Ao término da produção, o aluno fará uma auto-avaliação desta produção pela mediação de um colega de classe e, em seguida, você poderá intervir. Durante essa etapa, deve-se levar em consideração, principalmente, as condições sócio-interativas, pois, de produtor, o aluno passa, agora, a interlocutor de seu próprio texto, e o professor(a), o seu destinatário real e imediato. A intervenção do educador, nesse momento, ou seja, seus questionamentos, complementos, interrogações e sugestões, possibilitarão ao aluno refletir sua escrita. Nessa atividade, deve-se, primeiramente, verificar o enfoque que o aluno dá ao tema, perpassando, depois, para o estilo empregado, analisando as questões semânticas e sintáticas, para, num último plano, abordar a composição formal do enunciado (fonética, morfologia, léxico, pontuação, acentuação e ortografia).
          Ao iniciar esse trabalho com o ensino fundamental, é necessário solicitar aos alunos que tragam para a sala de aula tudo o que conhecem sobre conto de fadas, principalmente sobre o texto Chapeuzinho Vermelho ou que se relacione a esse conto.  Deve-se expor à classe a história dos milenares contos de fadas, que provêm da tradição oral e foram trasncritos e adaptados a partir do final do século XVII por quatro escritores: o francês Charles Perrault, o dinamarquês Hans Christian Andersen e os irmãos Grimm. Os alunos devem saber que antes de ter sido voltado para as crianças, o conto de fada foi originalmente criado para os leitores adultos e que dois fatores principais podem ser apontados para ajudar a esclarecer a transferência dos contos de fadas do universo adulto para o infantil. O primeiro é que, até o século XVII, a criança não era percebida como um ser socialmente distinto do adulto. Ela compartilhava com os adultos o mesmo tipo de roupa, os cômodos, o trabalho e também os ambientes sociais. Assim, circulando entre adultos, as crianças entravam em contato com os contos de fadas e invariavelmente se sentiam atraídas para o seu universo imaginativo. Cabe destacar também o papel-chave que as governantas, vindas da camada popular, desempenharam nesse processo ao contarem as narrativas folclóricas para os filhos dos nobres que ficavam aos seus cuidados. O exemplo desta importância está na capa da primeira edição de "contos da Mãe Gansa", em que Perrault mostra uma senhora idosa contando estórias para crianças ao pé da lareira. Será necessário que os alunos saibam que foi com Charles Perrault (França - 1628-1703) que se iniciou a Literatura Infantil.Dentre elas: O barba azul, A gata borralheira, Pele de asno, Chapeuzinho vermelho, O Pequeno polegar, O gato de botas, A bela adormecida, Riquete de crista, etc. Suas obras foram recolhidas do folclore, de fontes diversas, sendo a maioria de fontes italianas. O valor delas está na gratuidade, na atemporalidade e na sua universidade, pois não só atinge crianças, mas encanta a todos que ouvem ou lêem.
          Já os irmãos Grimm(Alemanha -Jacob, 1785-1863, e Wilhelm, 1786-1859) foram professores e folcloristas que viajaram recolhendo junto ao povo sua tradição e histórias, registrando-as, povoando o universo dos leitores (sem idade) de encanto das fadas. As três fadas, Plumas, Os sete corvos, Ovelho que virou jovem, A gata borralheira, Hans _ o ouriço, Chapeuzinho vermalho e O cervo são algumas obras desses autores que atemporalizaram o fantástico-maravilhoso dos contos de fadas, retiradas da essência do homem simples e que introjetadas de romantismo atingiram a alma da criança.
          Outro escritor de renome foi Hans Christian Andersen (Sec. XIX - 1805-1875) que também se baseou no folclore para escrever suas obras, pois nasceu do povo, viveu entre ele durante muito tempo e, mais tarde, apresentou essa cultura em seus contos por meio da expressão poética que não coube aos demais, não se preocupando com a questão moral pelo didatismo moralizante. Esse trabalho estético pode ser percebido em O patinho feio, O soldadinho de chumbo, A rainha da neve, Fábulas da minha vida, As galochas da felicidade, A sereiazinha, A pequena vendedora de fósforo, Sapatinmhos vermelhos, O menino moribundo e outras obras.
          É essemcial que a classe conheça um pouco sobre a Idade Média, quando essas histórias começaram a ser escritas, pois, naquela época, as pessoas viviam em aldeias e as florestas eram, de fato, cheias de perigos. A maioria das pessoas era analfabeta, incluindo os reis e era comum as mulheres morrerem no parto - não é à toa, portanto, que as madrastas aparecem bastante nas histórias infantis. Havia uma rígida divisão social e a ascensão de uma classe para outra só se dava pelo casamento ou pela descoberta de um tesouro. Nas florestas da Europa, o lobo era o símbolo do perigo. Na Rússia, era o urso.
          É preciso deixar claro aos alunos que esses contos, a princípio, não se destinavam às crianças, constituindo mitos difundidos por inúmeros povos. Ora, como o homem primitivo não tinha explicações racionais para o mundo, ele buscava no mito, na narrativa fantástica, a compreensão de todas as coisas. Daí ser os relâmpagos "armas dos deuses", as águas seriam controladas pelas sereias, determinada planta ou árvore surgiria de algum ato mágico, etc. São constantes nessas histórias a presença de duendes, anões, feiticeiros, animais falantes, objetos mágicos, as quais, durante toda a Idade Média e Moderna,  constituiram a literatura oral do povo europeu e que, a partir do século XVII, foram reunidas e recontadas por escritores.
          É necessário que os alunos saibam que, antigamente, as pessoas costumavam ter muitos filhos, apesar de muitos deles não sobreviverem. Nem sempre as famílias mais pobres tinham condições de sustentar o grande número de filhos, assim, eles eram deixados no meio do mato para os pais não verem seu fim, ou deixados em igrejas, supondo serem adotados por alguém. Outras eram mandadas embora de casa muito cedo para providenciarem seu próprio sustento. Muitos contos de fadas contam a luta heróica dessas crianças pela sobrevivência.
          É ainda relevante comentar aos alunos sobre a importância dos contos de fadas na linguagem dialógica e polifônica de Monteiro Lobato (Brasil), rompendo com a forma convencional de escrever contos infantis. Da mesma forma se deve falar sobre as adaptações de Walt Disney e sobre autores brasileiros que escrevem contos de fadas e fazem adaptações para um contexto contemporâneo, tais como: Maurício de Souza, Eva Furnari, Sylvia Orthoff, Bartolomeu Campos Queirós, Ana Maria Machado, Ruth Rocha, Fernanda Lopes de Almeida, Marina Colassanti, Ziraldo, Emily Rodda Ernani, Edson Gabriel Garcia, Flávio de Souza, Aurélio de Oliveira, Regina Carvalho, Carlos Queiroz Telle, Fernando Portela, Flávia Muniz, Júlio Emílio Braz, Márcia Kupstas, Orlando de Miranda, Pedro Bandeira e tantos outros que enriquecem o acervo literário destinado a jovens pré-adolescentes e adolescentes de nosso país, contribuindo para a sua formação humana.
          É indispensável que o aluno conheça sobre a composição dos contos de fadas, atentando para a sua estrutura simples e fixa, pois ele tem uma característica bem marcante como na sua fórmula inicial: "Era uma vez..." e final: "... e foram felizes para sempre". Há neles também uma situação inicial, uma ordem pertubadora que desestabiliza a situação inicial, dando origem ao(s) conflito(s) que só é(são) interrompido(s) com o aparecimento de uma força maior que ajuda a restabelecer a ordem. O "Era uma vez..." remete o leitor ao passado e ao mundo irreal.
          Ao longo desses contos, as indicações da natureza são limitadas e vagas, não permitindo delimitar rigorosamente o tempo da ação e do espaço (casa, floresta, palácio, vilarejo, etc), proporcionando um caráter atemporal e universal, concedendo a eles uma reatualização constante. São eles ainda carregados de simbologia: rosa -símbolo do amor; beijo - desperta e faz renascer; lobo-mau - algo ou pessoa que quer fazer mal a alguém. São repletos de magia que alimentam a fantasia e a imaginação e ajuda a encarar os problemas da vida, a enfrentar os desafios e trazem esperança por dias melhores.
          Ao iniciar o trabalho com os educandos, pode-se propor que criem uma coletânea de contos de fadas a ser apresentada à comunidade escolar constituída de todos os textos produzidos pelos alunos da classe ou, então, uma outra atividade envolvendo os contos de fadas. Essa tarefa se tornará mais fácil a partir do instante que eles tiverem contato com o gênero propriamente dito e conhecerem a sua construção. Assim, para possibilitar a execução da atividade, o professor deverá começar pela apresentação do gênero.
          Para completar a preparação ao trabalho, o professor(a), investigará sua classe: Você conhece algum conto de fada? já leu, assistiu ou ouviu algum? Qual história você mais gostou? Por quê? Poderia cotá-la à classe? Esse recurso possibilitará ao aluno pesquisar, falar, dialogar com o professor e com a classe. Cumprida essa etapa, deve-se pensar em explorar o gênero, apresentando a primeira versão clássica de Chapeuzinho Vermelho, analisando-a em relação ao seu tema, seu estilo e sua composição, mediante as relações entre locutor e interlocutor, as condições de produção, o contexto e a situação de leitura.
          Essas atividades preparam o aluno e dão-lhe condições a responder à leitura de forma que possa planejar e elaborar suas idéias. O passo seguinte consiste em propiciar meios ao aluno para ele refletir sua produção. Essa proposta de atividade, porém, não deve visar uma mera higienização do texto do aluno, isto é, o professor não poderá usar a reescrita apenas como uma "operação limpeza", eliminando as impurezas, objetiveando apenas corrigir a ortografia, concordância e pontuação, priorizando a visualização da superfície textual sem dar a devida importância às relações de sentido emergentes na interlocução. Porém, ao propor o exercício de reflexão, o professor não deverá nortear o trabalho para a fragmentação da reescrita, onde os recursos linguísticos sejam tratados de modo desarticulados com a enunciação, sem significado, desencadeando uma reelaboração formal e mecânica. Todavia, deverá suscitar a discussão para acabar com o predomínio de um sentido único para o texto, ampliando as categorias mediadoras da reescrita diante da valorização do conteúdo do autor do texto, numa atitude de reflexão da linguagem (JESUS, 1997, p.99).
          Assim, diante dos comentários realizados, num diálogo consigo mesmo, numa atividade de internalização, o aluno-leitor-autor procura melhorar e tornar mais clara sua produção para um novo interlocutor, que poderá ser outro colega da classe, da escola ou alguém fora dela - o leitor virtual, reescrevendo a sua criação e, cada texto lido e produzido servirá para ele como ponto de partida para novas leituras e outras produções, as quais poderão ser renovadas, mostrando-se sempre superior àquela apresentada na primeira versão, graças às ações dos sujeitos envolvidos no processo. Essa produção final possibilita ao aluno pôr em prática as noções e os instrumentos elaborados, permitindo ao professor realizar aí a avaliação somativa (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004,p.106). O papel de interlocução, ou seja, da participação do outro na revisão e reestruturação do texto, exercido por um ser mais experiente, estimula e impulsiona o outro para uma direção mais distante, e a alternância entre o papel do aluno crítico e do aluno leitor faz com que haja reflexão e, aos poucos, mudança e amadurecimento da funções superiores da mente (GARCEZ, 1988).
          Esse processo enunciativo é lento, mas progressivo, e para gerar mudanças, na sala de aula, quer em relação à leitura ou à escrita, deverá ser repetitivo, contínuo e persistente, numa concepção de ensino em que o aluno desenvolve o seu conhecimento mediado por um professor também leitor-escritor que o orientar dialógica e cientificamente nessa construção, confirmando o papel articulador da escola para a formação de homens cidadãos, críticos e transformadores.

REFERÊNCIAS:

BAKHTIN, Mikail. M. (Volochínov). Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Laud e Yara F. Vieira, São Paulo: Hucitec, 1992.

________. Estética da criação verbal. Trad. Mª Ermantina G.G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

________. Problemas da poética de Dostoievski. Tradução, notas e prefácio de Paulo Bezerra, 2.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

________. Questões de literatura e de estética: A teoria do romance. 4.ed. São Paulo: ed. da UNESP, 1998.





        








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